domingo, outubro 19, 2003

Contraponto

Fernando Pessoa, em seu livro do Desassossego, fala que todos temos uma vida que é vivida e uma vida que é sonhada e que não sabendo ele nunca qual é uma e qual é outra dá importância a ambas.
A vida sonhada geralmente é mais perfeita, embora não tenha tantos detalhes quanto a vivida. Porque em sonho, ou planos, as coisas ruins podem ser despachadas via sedex, enquanto que na vida vivida há sempre um ingrediente faltando quando se quer fazer aquele suflê delicioso. Um detalhe tolo, fútil, mas que juntamente com outra série de detalhes também tolos e fúteis geram momentos de descontentamento. Um botão na camisa não é o suficiente para nos tirar do sério, no entanto junte-se a isso, não achar o anticoncepcional, escorregar num brinquedo que está jogado no chão, um bebê reclamando atenção, um leve odor de queimado no ar (e a lembrança de uma panela no fogo), pronto! O nervosismo é inevitável. E chutar o cachorro às vezes não basta (ainda mais quando nem cachorro se tem) é preciso chutar a vida! E aí já viram... reação em cadeia ....... alguém chuta a vida no Brasil ................. e uma velhinha é morta em Londres! Imagina ser culpado pela morte de uma pobre velhinha que atravessa a rua em Londres!?
Esses pequenos aborrecimentos nos desgastam mais do que um aborrecimento substancioso. Porque os primeiros a gente não pára pra pensar, pra discutir, pra resolver, eles vão passando ou se acumulando, dependendo de cada um. Os últimos como geralmente são grandes, não podendo conviver com eles, logo os resolvemos, nem que seja em nós mesmos.
Esses dias eu já devo ter cometido um genocídio em Londres, fico imaginando quantas velhinhas não morreram por minha culpa!
E eu, que farei com minha culpa?
Recolho-a e continuo chutando o cachorro........e matando velhinhas!
Pessoa era um sábio, dando importância à vida sonhada ele podia se privar dessas veleidades fúteis, tolas, podia viver sem detalhes, ignorando-os completamente de acordo com sua vontade, não o devia incomodar a falta do botão na camisa (isso se ele desse por essa falta - e camisa de sonho lá tem botão?). Nós, reles mortais, vivemos cada detalhezinho!
E dizem que Pessoa era louco, esquizofrênico!
Ouvir o que quer, ver o que quer, dar importância somente ao que se quer é considerado distúrbio mental.
Eu costumo chamar isso de superioridade!
Quisera ver e ouvir e viver apenas o que me delicia a alma e o corpo, mas o contraponto se interpõe entre minhas delícias.
Aos sorrisos se seguem as lágrimas e depois os sorrisos, como na toada de Drummond: briga, perdoa, perdoa, briga...
e assim, nessa toada, seguimos...

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